Estudo: ADESÃO AO CONTROLE GLICÊMICO GUIADO POR METAS NO PREOPERATÓRIO EM PACIENTES DE ALTO RISCO

Problemas de qualidade no cuidado de saúde incorrem na perda de oportunidade de se produzir melhores resultados quanto aos danos evitáveis e no aumento desnecessário dos custos. Ações que buscam desenvolver mudanças para enfrentar tais desafios nas instituições de saúde, por sua vez, ainda são pouco fomentadas e divulgadas como ferramentas validadas para melhoria de processos em saúde (1). Iniciativas para a melhoria de qualidade do cuidado de saúde e da segurança do paciente terminam frequentemente gerando mudanças limitadas, pouco sustentáveis e de difícil replicação especialmente para contextos organizacionais diversos (2,3). A melhoria de qualidade no cuidado de saúde caracteriza-se por mudanças que produzem, direta ou indiretamente, melhores resultados de saúde de maneira duradoura, englobando conceitos técnicos padronizados, mas, principalmente, favorecendo interação de processos e ações dentro de um contexto multidisciplinar (4). Na análise da linha do cuidado do paciente cirúrgico, a hiperglicemia perioperatória é uma condição prejudicial e bastante comum, principalmente nos pacientes diabéticos que representam uma parcela crescente dessa população. A hiperglicemia apresenta diversas causas, destacando-se a resposta endócrino-metabólica-imunológica ao estresse, propiciando uma série de alterações orgânicas deletérias, como aumento da resposta inflamatória, da susceptibilidade às infecções, à lesão e à disfunção múltipla de órgãos e sistemas. Desta forma, a implantação de protocolo gerenciado para controle glicêmico perioperatório, com padronização de procedimentos assistenciais, metas a serem alcançadas e avaliação da adesão dos médicos anestesiologistas no peroperatório às recomendações, com análise da efetividade do protocolo no desfecho dos pacientes, torna-se fundamental. 

O controle glicêmico perioperatório guiado por metas foi proposto objetivando reduzir a ocorrência de morbidade perioperatória por meio da melhoria da assistência. Entretanto, para promover a adesão ao protocolo e garantir a efetividade no desfecho clínico, há necessidade de estudar e desenvolver estratégias de promoção e divulgação, associadas a educação continuada da equipe assistencial médica. Desta forma, baseando-se no conceito de melhoria em processo de qualidade em saúde, o presente estudo pretendeu analisar estratégias e intervenções para melhoria da adesão ao protocolo de controle glicêmico no perioperatório e a efetividade das ações implantadas no desfecho clínico dos pacientes analisados.

Protocolo de controle glicêmico institucional

Pelo protocolo institucional, todos os pacientes diabéticos ou/e com tempo cirúrgico maior que 6 horas deveriam ser incluídos para monitoramento da glicemia capilar perioperatória e submetidos às condutas específicas pelos médicos anestesiologistas. A aferição pré-operatória da glicemia capilar poderia ser realizada no período pré-operatório, na unidade de internação ou no início do ato operatório, nos casos de urgência/emergência. Esta aferição deveria constar no registro do prontuário.

O alvo glicêmico no paciente diabético no intraoperatório compreendeu valores de até 180 mg/dL. Pacientes diabéticos com glicemia > 180mg/dL deveriam ter a glicemia aferida de 1/1h e o controle da glicemia capilar deveria ser instituído por meio da infusão de glicose e insulina ou bôlus venoso de insulina, conforme avaliação do médico anestesiologista e levando-se em consideração porte da cirurgia e condições clínicas do paciente. Em pacientes com adequado controle glicêmico peroperatório, recomendou-se a realização de glicemia capilar de 2/2h, com registro adequado da informação em ficha de anestesia. Se a glicemia fosse menor que 80mg/dl (critério para hipoglicemia), recomendou-se realizar infusão em bolo de 25 ml de glicose a 50% até normalização e monitorizar a glicemia de 1/1h. Em todas as medidas de glicemia peroperatório, deveria constar o horário de aferição, para que houvesse a continuidade no seguimento da monitorização da glicemia durante todo o período estudado. A glicemia capilar basal coletada no período pré-operatório foi a referência adotada para o intervalo de monitorização no intraoperatório, bem como as condutas terapêuticas referentes ao controle glicêmico. Nos casos em que a glicemia capilar permanecer >180 mg/dL na alta da RPA ou momento da transferência do cuidado para UTI, deve haver passagem do caso pela equipe de anestesia para o médico hospitalista da unidade de internação ou intensivista, objetivando uma continuidade do tratamento e visando melhor controle glicêmico no pós-operatório, com devido registro em prontuário.

Discussão

A Ciência da Melhoria do Cuidado de Saúde ganhou projeção nos últimos anos, sendo descrita como área de estudos, voltada para o desenvolvimento e avaliação de intervenções para a melhoria da qualidade do cuidado, objetivando explicar como estas ações são desenvolvidas, fatores associados ao sucesso de implantação e produção de resultados esperados consolidados (6,7). Neste estudo, mostrou-se que a implantação de um programa de educação médica individualizado, com exposição dialogada interativa seguido de teste de conhecimento, se mostrou efetivo em promover melhoria na assistência no cuidado ao paciente sob alto risco de alterações glicêmicas no peroperatório.

Projetos de melhoria de qualidade que valorizam a concepção e implementação de mudanças incrementais e o aprendizado adquirido são fundamentais para consolidação de processos assistências, o que vai além apenas da promoção de conhecimento técnico-científico. Esses projetos caracterizam-se por um âmbito mais amplo, sendo um processo dinâmico de testes e ajustes até que o objetivo seja alcançado. Nesta análise, foram realizadas algumas mudanças na estratégia de promoção de boas práticas assistenciais do protocolo de controle glicêmico que não se tornaram melhoria ao longo do ano de 2017. Dentre os fatores elencados nas análises críticas dos indicadores relacionados a glicemia, destacam-se como dificultadores da melhoria desta etapa assistencial a lacuna no conhecimento médico em relação à importância do controle glicêmico no perioperatório, a desvalorização do controle glicêmico diante de outras variáveis intraoperatórias anestésicas a serem ajustadas, a falha em relacionar as ações do médico anestesiologista no intraoperatório e ao desfecho dos pacientes no pós-operatório imediato e tardio e a dificuldade em manter uma padronização de condutas dentro da equipe médica, gerando conflitos na transferência e continuidade do cuidado.

Ao longo dos anos tem havido uma mudança gradual na educação médica de uma abordagem de aprendizagem passiva para uma abordagem mais ativa e interativa. Para fortalecer o ambiente de aquisição de conhecimento, os educadores precisam estar cientes dos diferentes estilos de aprendizado e, desta forma, adaptar estratégias e metodologias pedagógicas que aprimorem o processo de aprendizagem (8). Observou-se nesta pesquisa que estratégias educacionais passivas, com promoção de aulas expositivas, publicação de documentos e exposição de fluxos e cartazes em locais estratégicos do ambiente cirúrgico, de maneira isolada, não se mostraram efetivos em melhorar a adesão de médicos anestesiologistas para aplicação do protocolo de controle glicêmico. O PEMC, por considerar a não conformidade de maneira mais individualizada e aplicar processo de treinamento e avaliação de efetividade após, garantiu uma maior participação do profissional no processo, melhorando a adesão ao longo do tempo. O uso de exposições dialogadas interativas como estratégia no ensino é citado como estratégia promissora para desenvolvimento de competências dentro de um processo de educação continuada (9).  Nesse tipo de abordagem, o foco principal é o diálogo entre facilitador e o médico em treinamento. Além disso, a participação ativa do médico é valorizada durante a abordagem (9). Estratégias educacionais continuadas para médicos anestesiologistas e situações críticas no intraoperatório, do ponto de vista pedagógico, ainda são poucos estudadas e precisam ser analisadas e implantadas para promoção de melhorias na área de saúde dentro de um contexto multidisciplinar, além de permitir a replicação em outras instituições e contextos.

Estudar abordagens de capacitação para aproximar o médico do conhecimento é mandatório. Além da educação à distância, o uso constante dos recursos de apoio à decisão clínica, como protocolos para determinadas linhas de cuidado, são uma excelente alternativa não só para o profissional da saúde que opta por uma determinada conduta ou tratamento, como para ampliar o seu conhecimento. Esse tipo de ferramenta deve ser incorporado no fluxo de trabalho, proporcionando decisões mais certeiras, o que corrobora para salvar vidas e também equilibrar custos com complicações evitáveis. É importante destacar que o processo educacional passivo com aulas expositivas, cartazes e reunião de discussão de indicadores que antecederam o PEMC também contribuíram para a melhoria da adesão ao controle glicêmico, sendo que o efeito isolado do PEMC não pôde ser quantificado neste estudo, uma vez que as demais estratégias anteriores não foram eliminadas quando do início do PEMC, mas podem ser consideradas como contribuição somatória para o objetivo a ser alcançado. 

A hipoglicemia afeta de 5% a 20% dos pacientes hospitalizados, principalmente os tratados com antidiabéticos ou insulina, mas também pode ocorrer entre os não diabéticos com antecedente de cirurgia digestiva, câncer ou patologias graves (10). A presença de hipoglicemia aumenta a morbimortalidade em diabéticos e não diabéticos independentemente da gravidade. A incidência descrita de hipoglicemia inferior a 70 mg/dL é de 16%, enquanto a de hipoglicemia grave (inferior a 40 mg/dL) é de 0,5% com terapia intravenosa (11). A taxa de hipoglicemia neste estudo foi considerada compatível com a literatura. Os fatores que podem ter contribuído estão relacionados ao tempo de jejum prolongado, hospital cirúrgico de grande rotatividade, no qual os pacientes internam em período próximo ao momento da cirurgia e sem tempo adequado para realização de abreviação de jejum. Além disso, nos pacientes diabéticos, o uso de hipoglicemiantes de maneira não adequada no pré-operatório pode contribuir para ocorrência de hipoglicemia perioperatória. Contudo, a análise das causas de hipoglicemia não foram objetivo deste estudo. Mas, no intraoperatório, a inexistência de diagnóstico e conduta adequada em relação à hipoglicemia pode acarretar danos graves ao paciente, uma vez que não é possível avaliar sintomas clínicos de hipoglicemia em pacientes sob anestesia. Tal resultado em relação à hipoglicemia será a base para melhorias a serem implantadas no protocolo, objetivando alinhamento de processos em relação ao preparo pré-operatório de pacientes diabéticos e cuidados multidisciplinares após internação hospitalar para cirurgias.

Nos casos em que o protocolo foi aplicado nos dois anos de estudo, houve efetividade adequada em relação às metas glicêmicas estipuladas, com desfecho favorável à respeito do controle glicêmico perioperatório, evidenciando que rotinas formalizadas e padronizadas, com determinação de ações e tempos de monitoramento para equipe assistencial são efetivos para melhoria na assistência e redução de danos causados pela hiperglicemia perioperatória.          

A prática de se realizar rigoroso controle dos níveis de glicose sanguínea durante o período peroperatório vem recebendo substancial atenção nos últimos 10 anos, especialmente após as publicações de Van Der Berghe et al. (12), sugerindo importante redução na morbimortalidade em pacientes criticamente doentes.  O controle glicêmico é um aspecto importante a ser observado na prevenção das infecções do sítio cirúrgico, ocupando posição de igual relevância entre outras medidas preventivas tradicionais, como apropriada antibioticoprofilaxia, normotermia e tricotomia (13). Neste estudo, casos de infecção de ferida operatória não foram associados a descontrole glicêmico no peroperatório, o que demonstra a importância de eliminar este fator de risco diante da probabilidade de ocorrência de infecção.

Ainda há uma considerável distância entre o avanço do conhecimento científico acerca das melhores práticas do cuidado e o cuidado que efetivamente é prestado aos pacientes. O reconhecimento de que abordagens técnicas e organizacionais/processos são complementares na melhoria do cuidado de saúde, assim como a prerrogativa de que a disponibilidade de evidências científicas em favor de determinados processos não é suficiente para promover mudanças no cuidado de saúde, imprimem novos desafios à área da qualidade do cuidado e educação médica permanente e continuada nas organizações de saúde. Concluindo, a estratégia de gerenciamento do protocolo de controle glicêmico e educação médica continuada como ação intencional mostrou-se efetiva na melhoria da qualidade assistencial para manejo glicêmico no perioperatório e com repercussão positiva no desfecho de pacientes de alto risco.

Referências:

1 – Dyson J, Lawton R, Jackson C, Cheater F. Development of a theory-based instrument to identify barriers and levers to best hand hygiene practice among healthcare practitioners. Implement Sci 2013; 8:111.
2 – Davidoff F, Dixon-Woods M, Leviton L, Michie S. Demystifying theory and its use in improvement. BMJ Qual Saf 2015; 24:228-38.
3 – Grol R, Wensing M, Eccles M, Davis D. Improving patient care: the implementation of change in health care. Second edition. Hoboken: John Wiley & Sons; 2013.
4 – Batalden PB, Davidoff F. What is “quality improvement” and how can it transform healthcare? Qual Saf Health Care 2007; 16:2-3.
5 – Dixon-Woods M, Leslie M, Tarrant C, Bion J. Explaining Matching Michigan: an ethnographic study of a patient safety program. Implement Sci 2013; 8:70.
6 – Berwick DM. The science of improvement. J Am Med Assoc 2008; 299:1182-4.
7 – The Health Foundation. Evidence scan: Improvement Science. London: The Health Foundation; 2011.
8 – Barbosa FF. Estilos de Ensino e Aprendizagem. Revista da Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2007.
9 – Souza MBB, Zem-Mascarenhas SH, Rocha ESB. Percepção dos alunos de graduação sobre a disciplina de administração aplicada à enfermagem. Rev Min Enferm [Internet]. 2005 [cited 2019 Dec 29]; 9(2):1406. Available from: http://www.reme.org.br/artigo/ detalhes/452
10 – Umpierrez GE, Hellman R, Korytkowski MT, Kosiborod M, Maynard GA, Montori VM, Seley JJ, Van den Berghe G; Endocrine Society. Management of hyperglycemia in hospitalized patients in non-critical care setting: an endocrine society clinical practice guideline. J Clin Endocrinol Metab. 2012;97(1):16-38.
11 – The NICE-SUGAR Study Investigators. Intensive versus Conventional Glucose Control in Critically Ill Patients N Engl J Med. 2009;360:1283-1297.
12 – Van den Berghe G, Wilmer A, Hermans G, Meersseman W, Wouters PJ, Milants I, et al. Intensive insulin therapy in the medical ICU. N Engl J Med. 2006; 345(5):449-61.
13 – Tanner J, Padley W, Assadian O, Leaper D, Kiernan M, Edmiston C. Do surgical care bundles reduce the risk of surgical site infections in patients undergoing colorectal surgery? A systematic review and cohort meta-analysis of 8,515 patients. Surgery. 2015;158(1):66-77.

Desmistificando a anestesia
A revista BMJ Simulation Enhanced Learning (BMJ STEL) publicará, ao longo da semana, um estudo desenvolvido pela CMA em parceria com a Rede D’Or São Luiz

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